COMNSALIDADE: um desafio a ser superado
(Leitura: 1Cr 11,23-26; Jo 13, 1-15)
Todo ser vivo precisa de comida e bebida para restaurar as forças e manter sua existência. Comer e beber são, portanto, atos típicos de todo ser vivo. Porém o ser humano precisa, não somente de comer e beber, mas também de querer saborear tudo aquilo que consome. Isto é, saber degustar os alimentos mais saudáveis e com maior prazer, quer deliciar com grande apetite em vista da garantia de uma qualidade de vida mais saudável e, portanto, mais alegre e feliz. O animal não precisa de tudo isso. Ele precisa apenas de comer tudo o que é possível, até capaz de brigar e matar os outros, para se manter vivo, seguindo fielmente o instinto de sua sobrevivência. Diferentemente do comer animálico, o saborear é alimentar-se humanamente com maior gosto e satisfação guiado pela necessidade e pelo desejo preferencial do tipo de alimentos e pelo saber da escolha predileta dos cardápios. Saborear requer, por isso, a inteligência e a arte no momento da busca dos alimentos adequados e a habilidade e cuidado na hora do preparo.
Comer sozinho é o ato característico dos animais. O ser humano precisa dos outros para compartilhar seus alimentos e saborear juntos, em um clima festivo. É um ato social e celebrativo, típico de um ser vivo dotado de inteligência, de sabedoria e de vontade. Assim, os cristãos se encontravam para comer e beber. Quando Jesus ensinava as pessoas se dava, na maioria das vezes, no contexto de uma refeição, não raramente no seu próprio lar ou os dos seus familiares e amigos.
Não somente depois da mesa, mas também antes e durante a mesa de comunhão fraterna que as pessoas partilhavam espontaneamente, e com alegria e humildade de coração, tanto os seus alimentos quanto as suas experiências de vida: as vitórias e as derrotas, os conhecimentos e sabedorias, os sonhos de vencer na luta e os medos de fracassos na arte da busca pela uma vida mais saudável, mais fraterna, mais solidária, mais justa, mais alegre e feliz.
Comer juntos (comensalidade) é, sobre diversos aspectos, uma refeição profundamente substancial com significado simbólico, e não o contrário. Assim, a comunidade lucana dos Atos relata sobre o modo de vida dos primeiros cristãos da seguinte forma:
“Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão, e às orações. Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um. Mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento – em conjunto – com alegria e simplicidade de coração” (At 2, 42. 45-46).
Reunir, compartilhar e comer juntos era um dos objetivos principais do encontro. Tanto é verdade que o apóstolo Paulo aconselha a comunidade de Corinto, dizendo: “Meus irmãos, quando vos reunirdes para a ceia, esperai uns aos outros” (1Cr 11,33). É claro que a comida e a bebida não são elementos centrais do Reino de Deus, mas são, sem resta de dúvida, os elementos verificadores da prática da paz verdadeira, de justiça social e do direito crístico da vida, testemunhado por Jesus de Nazaré e esperado pelos povos de todas as culturas, nações e gerações, são a vida em forma de matéria, são o penhor do Reino (cf. Rm 14,17).
O ato de comer juntos, enquanto símbolo, transcende as palavras, comunica algo mais para além de sua aparência. Representa, não somente algo sociocultutral, político, econômico e familiar, mas também místico e espiritual/religioso, principalmente para a tradição oriental. É o momento fundador, um ato sagrado, pois representa a paz genuína, a união verdadeira, a vida e o amor integral e solidário.
É no encontro comensal que as pessoas cultivam a amizade, fortalecem os laços de amigo, redimensionam suas convivências, reconstroem suas histórias, reatam suas relações, confrontam suas opiniões, compartilham seus expectativas e desafios da vida, relem os ensinamentos dos antepassados re-significando suas mensagens para a realidade atual.
Assim, Jesus ceou com seus discípulos antes de ser preso, ser julgado e condenado à morte na cruz. A ceia foi um momento fundador para o grupo, pois era o fim de uma etapa e início de uma “nova era”. Mas qual seria, afinal, a mensagem da quinta-feira santa para nossa vida hoje? E a traição que ocorreu naquela noite, logo após a refeição?
Mensagem política: toda liderança deve ser feita de modo regenerado com a participação de todos em vista do bem comum, e não só para o indivíduo ou do pequeno grupo isolado. Jesus quis que, a partir do grupo dos Doze, através deles e com eles, sua luta pela transformação de mentalidade, pela união, pelo direito igual de vida para todos e pela libertação do povo da opressão romana tenha continuidade, custe que custar. Ele sabia diante mão dos riscos daquilo que está fazendo, sabia também os sinais de descontentamento interno, mas acredita piamente que uma luta pela boa causa traz, mais cedo ou mais tarde, de um modo e de outro, o resultado esperado. Por isso diz: “Se o grão de trigo cai na terra e não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muitos frutos” (Jo 12,24). Assim, Jesus mostra o caráter de um verdadeiro líder-servo que sofre por seu povo.
Mensagem social: a traição de Judas revela a fragilidade do convívio relacional do grupo. A desconfiança e insatisfação nos relacionamentos do cotidiano, a falta de transparência, de serenidade, de diálogo maduro, de respeito pelo outro como outro deferente, sobretudo, a falta do amor verdadeiro, tudo isso destrói a unidade.
Não tem como encarar um amigo com uma cara dupla e uma língua ramificada: o seu amigo é o seu querido e amado e, ao mesmo tempo, seu inimigo detestado e odiado. Como pode usar o mesmo beijo e o mesmo abraço, que são símbolos da afeição no convívio familiar e amizade, como sinal de traição?
Essa realidade contraditória não é o caso isolado. É bom saber que o “Jesus” e o “Judas” estão dentro de cada um e cada uma de nós. Somos sombras e luzes, fortes e fracos, vida e morte. Por isso da mesma casa de oração e mesa de refeição fraterna acontece, muitas vezes, a pior traição. Um grupo qualquer só é sólido na medida em que há solidariedade e mútuo respeito, a compreensão, a tolerância e a aceitação das diferenças, a simplicidade e a transparência, o autocontrole e o equilíbrio emocional, a paciência, a serenidade e a maturidade nas relações. É necessário que haja a perseverança para alcançar a salvação, no aqui e agora e no além: “É pela perseverança que mantereis vossas vidas” (Lc 21,19).
Mensagem econômica: todo o bem da terra é graça de Deus concedida para todos. Por isso não é bom guardar tudo somente para si. Quem tem mais deve partilhar para com quem não tem: os bens e as oportunidades. O ato de partilha é algo humano e sagrado, representa a nobreza da vida humana. Dar o próprio pão e vinho para com quem mais precisa é doar a própria vida, por amor, para quem não tem garantia de vida. Por isso Jesus diz: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Jesus identifica o pão ao seu corpo e o vinho, o seu sangue porque lutou até a morte para que ninguém falte pão e vinho nas suas mesas de comunhão. Isso é tradição oriental. Por isso declara: “Toma e come, toma e beba pois esse pão é meu corpo e este cálice é meu sangue. Cada vez que se fazem isso, vocês celebram a minha memória”. Assim, todas as vezes que comemos o pão e bebemos do vinho eucarístcos do altar de Cristo devemos partilhar, da mesma forma, o nosso pão e nosso vinho para com o próximo. Isso é investimento.
Um ser humano enquanto humano de fé saudável e de amor solidário não será capaz de comer e beber com maior alegria e ter sono tranquilo enquanto seu irmão morrendo de fome e de sede na sua porta. O ser humano saudável e justo nunca acumula os bens da terra somente para si, nem coloniza nenhuma nação, nem oprime nenhum povo com o objetivo de tirar os seus bens daquela terra para enriquecer-se. O homem e mulher de fé madura, equilibrada e integral nunca praticam a injustiça contra seu semelhante, nem negam o direito do próximo e nem motivo para fazer nenhuma discriminação contra a ninguém, tanto em nome da política e muito menos da espiritualidade e religião:
“Quem anda com integridade e pratica a justiça: fala a verdade no coração e não deixa a língua correr; não faz mal ao seu próximo e não difama seu vezinho; não empresta dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente” (Sl 15, 2. 3. 5). “Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. O que passa disso vem do maligno” (Mt 5,37).
Mensagem espiritual/religiosa: Jesus, depois de tudo, diz aos seus: como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Todo ser humano criado à imagem e semelhança do Criador é chamado para revelar o Deus-amor na sua vida: através dos atos e ditos salvíficos, à luz da Boa Nova. É bom ter consciência clara e madura de que nós não temos (o ter) o Espírito de Deus, mas sim somos (o ser) o Espírito de Deus em corpo neste mundo (cf. Gn 2, 7), por isso devemos viver e fazer como Deus da vida integral e do amor inclusivo. Nós somos o “alter christus” (o outro Cristo). Em Cristo e com Cristo, somos a “imagem visível do Deus invisível” (Cl 1,15). Se conseguirmos viver o verdadeiro Deus como Jesus o viveu, seremos capazes de fazer transparecer o rosto de Deus, então o mundo, quando nos vê, vê o próprio Deus em nós: “Eu e Pai somos um. Quem me vê, vê o Pai” (Jo 10,30; 12,45). Não tem como amar a Deus sem amar o próximo. E nem adiante gritar senhor, senhor, sem praticar o seu mandamento.
Outros elementos essenciais nessas leituras que merecem a atenção: a generosidade (entrega de vida pela vida), simplicidade (lava pés), hospitalidade (comer juntos), serenidade (partilha da experiência), humildade, compreensão e paciência (perdão).
Lucas Betekeneng