(Luc 7,1-10)
Q |
ual é o verdadeiro milagre que esse autor está querendo nos passar? Qual a diferença entre ser fiel (o homem e a mulher de fé) e ter crença (ou, ser crente)? O que significa a fé sem a prática eficiente e eficaz da justiça, da liberdade, da humildade, do respeito e do direito? Pode ou não a missão aos povos não-judeus; dizer de outra maneira, permitida ou não a missão aos povos não-cristãos e quais os tipos de tratamentos lhes dados e qual o anúncio a ser feito para com eles? A ironia implacável do autor do Evangelho (v.9) nos revela qual a verdadeira situação vivida e a sua intenção. O autor, na realidade, queria nos dizer que: “os verdadeiros pagãos são aqueles que se alegam ter uma religião, se apresentam como piedosos aparentes e rezam todo o dia, porém sem a prática justa de caridade, de solidariedade, de justiça, de liberdade, do respeito e do direito; são aqueles que não têm a humildade nem confiança e nem mesmo a prudência”. São esses alguns dos problemas principais da Igreja nos primeiros séculos cristãos (na comunidade lucana do Evangelho) que o autor quer nos passar.
Assim, através do seu relato, o autor da comunidade lucana nos revela as mentalidades e atitudes convivenciais dos cristãos (os judeus-cristãos) para com os demais povos e crenças, concretamente, com os, chamados, os não-judeus, ou “pagãos”. Para o autor, Deus não conhece a parcialidade; quem quer que seja o povo e sua fé, quando pratica os valores humanos-religiosos fundamentais (virtudes cardeais e teologais) como a justiça, o direito, a liberdade, a humildade[1], o respeito, a prudência[2], etc., é acolhido por Ele (cf. At 10,34-35; 15,9).
O autor, nesse texto, não está querendo relatar o ato milagroso de Jesus na cura do funcionário do oficial romano. O verdadeiro milagre que o autor quer nos passar consiste no fato de “um ser humano-imagem-e-semelhança de Deus, porém visto e tratado como pagão conseguiu demonstrar o tamanho de sua fé, imprimida numa atitude de confiança inabalável, de humildade implacável, de respeito total e de prudência” que surpreende todo o mundo, até o próprio Jesus.
Aliás, a fé em um Deus milagreiro, este Deus é muito miserável, arbitrário, pobre, autoritário, intervencionista, idolátrico, injusto, doentio, tirano, arrogante, ou simplesmente o não-Deus, pois não tem respeito da responsabilidade da humanidade criada à sua própria imagem e semelhança e convocada para ser parceira na contínua criação do mundo, nem a humildade e a prudência. Um ser humano saudável, maduro, equilibrado, justo, sereno, humilde, prudente e responsável não tem esse tipo de crença, pois é uma verdadeira manipulação de Deus para o benefício próprio. A verdade é este: neste mundo da humanidade, o Deus verdadeiro do Nazareno se apresenta como um Deus que não tem voz nem vez, nem mesmo o poder para se defender diante das cruzes da vida, é um Deus totalmente im-potente. O nosso Deus não faz nada, mas nos inspira, nos ilumina, nos acompanha tudo.
O verdadeiro Deus de Jesus de Nazaré não intervém atuando arrogantemente fazendo milagrinhos. Ele não tem plano de criar bolsa saúde, bolsa alimento, bolsa moradia e outros mais e mandar para alguém que suplica interruptamente, dia e noite, a um santo-defunto. O que pior é que a Igreja institucional promove isso amplamente como forma de sua catequese. Mas, dessa maneira de fazer catequese é muito defeituosa, prejudicial para o crescimento e amadurecimento saudável da vida de fé do povo. Esse tipo do cristianismo é uma “religião individualista institucional” aburguesada que manipula Deus, anjos, Jesus, Sagrada Escritura e santos defuntos para se promover. Quem tem conhecimento de psicologia sabe muito bem o que é isso significa: “as práticas revelam os desejos ocultos de seus praticantes, que estão escondidos bem lá no fundo do seu inconsciente; ou seja, eles mesmos querem ser adorados e idolatrados pelos outros dessa mesma forma. Esse tipo de mentalidade da vida de fé religiosa idolátrica é doentia, infantil, insalubre e interesseira, e que já foi muito questionado na Bíblia (cf. Lc 18,19). O santo que é santo não aceitaria a sua promoção idolátrica nem mesmo queria ser idolatrado e/ou endeusado, pois se coloca como melhor e superior aos demais, e isso é a ofensa a Deus e ao próximo. A Palavra de Deus é dada para ser vivida e praticada, os exemplos de vida de Jesus e dos Santos servem como inspiração para cada um faça a sua parte. Seguir o exemplo é mais que imitar, é criar e recriar.
Ser fiel (a fé) não é o mesmo que ser crente (a crença). A fé é uma atitude (re-ação) de entrega total do interior sem reservas, ao passo que a crença é – também uma atitude interior, contudo – uma adesão não total, incerta, duvidosa, mutável. Mas, é o primeiro passo para a fé. Um fiel maduro não troca jamais o objeto de sua veneração e/ou adoração: o Deus-Amor (o Deus de Jesus de Nazaré, para os cristãos). O fiel experimenta todo o dia a manifestação de Deus nele e junto e/ou no meio dele (o Emanuel). Ao passo que o crente tem certa dificuldade de “sentir” Deus nele, de ver Deus nos rostos do próximo, por isso procura-o desesperadamente nas religiões, nas filosofias religiosas e nos demais movimentos; assim, ele nunca permanece em uma religião, sempre muda de uma religião à outra, pois nunca está satisfeito. É uma adesão imatura, incerta, duvidosa, calculativa e interesseira.
Para Lucas, uma solidariedade sem respeito nem confiança e humildade é uma vã caridade, uma exploração, um mau uso do fazer-bem para se promover como se fosse o verdadeiro benfeitor (cf. Lc 16,14-15). Dessa forma de solidariedade (caridade clientelista) é uma exploração, opressão, por isso ineficiente e ineficaz. Uma caridade que parou somente no nível assistencial e promocional, e não chegou a atingir um patamar mais alto, o da libertação, onde o sujeito teria estimulado a levantar e andar com suas próprias pernas, auxiliado para ser o protagonista de sua própria libertação: “Se alguém quiser me seguir, tome a sua crus e siga-me” (Mc 8,34). A caridade não se restringe à esmola, ela abrange todas as formas de relações humanas. Essa é a caridade na verdade: “Caritas in veritas” (Carta Enxíclica do Papa Bento XVI). “Só na verdade (a humanidade-imagem-e-semelhança) é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida”. O autor do Evangelho mostra também que a caridade não tem religião nem nacionalidade, nem cor nem idade e nem status, é um ato humano-divino. A caridade é, portanto, o Deus-Amor-Libertador em operação no mundo.
Pelo contexto, que está por trás da linguagem do próprio texto, percebemos que os grupos não-judeus não foram bem-vistos como deveriam ser. São mais discriminados, desprezados e rejeitados – sócio-religiosamente falando, são tratados como inferiores, de segunda classe. Exatamente nessa realidade que o autor trabalha o seu texto mostrando aos seus leitores que Deus está mais presente e, por isso, mais sentido no meio dos pequeninos e desprezados, está mais vivo e ativo na periferia. Essa intenção aparece com mais visivelmente quando o autor faz questão de apresentar o centurião romano cuja característica como um homem piedoso, um “temente a Deus” (vv. 4. 5)., e na reação instantânea de Jesus: “Ouvindo isso, Jesus se dirigiu à casa do oficial romano” (v. 6). Esse relato cria, sem resta de dúvida, a linha divisória entre os judeus-cristãos, de um lado e de outro, os não-judeus, ou “pagãos, em relação com a fidelidade: “quem é, afinal, fiel a Deus em Jesus Cristo e quem não é”. Isso é a maneira típica própria do autor para também dizer onde o Deus de Jesus está mais vivo e ativo preferencialmente e, portanto, mais sentido.
Sabemos que o Apóstolo Paulo tem discutido fortemente com os discípulos sobre os critérios de entrada dos “pagãos” no cristianismo, conhecida como “concílio” ou assembleia de Jerusalém (At 15). Para Paulo, segundo Lucas nessa assembleia, não há necessidade de seguir, a todo custo, a prescrição da Lei mosaica da circuncisão para poder ingressar no seguimento de Jesus. A salvação de Deus vem, não através do cumprimento da Lei, por melhor que seja, mas da vida de fé que nasce, cresce e amadurece no amor – a Deus e ao próximo, e que esse amor se vivencia de modo concreto e com eficácia e eficiência no dia-a-dia de vida. Dessa forma, a missão aos povos não para, necessariamente, dizer: “Jesus morreu, mas Deus o ressuscitou e agora está vivo. Nós somos o seu testemunho”. Esse tempo já passou! Agora tem que fazer mais que isso, de outra maneira: revelar na vida prática do cotidiano o rosto luminoso de Deus amoroso, misericordioso, justo, humilde, compassivo, acolhedor, compreensivo que Jesus tem revelado quando andava por toda parte fazendo bem, para com toda a humanidade (cf. At 10,38).
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BH. 16/09-2011
Lukas Betekeneng
[1] . A humildade é a “chave de ouro” que abre o caminho, para Deus e à humanidade. É o sinal da maturidade, do equilíbrio, sinal de uma fé saudável.
[2] . O centurião sabe bem que um judeu que freqüenta a casa de uns não-judeus (“pagão”) e convive com eles fica impuro, ou seja, fica inabilitado por certo período à oração e ao culto. Por essa razão, diz: “Não sou digno de que entres em minha casa; nem mesmo me achei digno de ir ao teu encontro” (v.6-7). Dessa atitude do centurião demonstra o seu respeito em relação à cultura dos outros.