(Mc 1,12-13)
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onforme a tradição bíblica, o deserto simboliza a tentação e superação. Compreende-se o deserto como espaço de solidão, de oração, de tentação e decisão. É nesse lugar “providencial” que acontece o reencontro do sentido da vida, de renovação dos compromissos e de fortalecimento da fidelidade; é o momento de estreitamento das relações. No entanto, é o lugar apropriado para a verificação e a provação de vida e amor-fidelidade: “Deus conduz seu povo (Ex 13,17-22) em meio a animais selvagens e satanás (Is 30,6; 34,14) para pô-lo à prova (Dt 8,2-6.15s). E nesse deserto, no meio das provações, o Israel se desesperou e murmurou contra Deus e os seus servos (cf. Ex 16,2-3; Nm 11,1-6; Ex 17,1-7; Nm 20,1-13; Dt 9,22-24; Sl 94,8-11).
Esse relato de Marcos sobre a ida de Jesus ao deserto, impelido pelo Espírito (v.12), é uma releitura da história do povo de Israel que passou pelo deserto de Sinai quando saiu do Egito rumo a terra “prometida” onde mana o leite e mel. Jesus, nesse relato é, mais que o indivíduo, a personificação do “novo Israel” (a comunidade cristã) que refaz a história dos antepassados; e assim, se realiza a profecia: “Do Egito chamei meu filho” (cf. Os 11,1). Dessa forma, o autor quis comparar com “Israel antigo” que se rebela contra Deus e não quis ouvir a sua voz; por mais que Deus o chamou, o Israel continua se distanciando dele (cf. Os 11,2). Jesus é a personificação do “novo Israel” (a comunidade cristã) que demonstra o discernimento e a fidelidade ao chamado de Deus.
Como antepassados que ficaram por 40 anos no deserto enfrentando desafios, Jesus de marcos também ficou por 40 dias no deserto e foi tentado por satanás (v. 13). Como antepassados que viveram no meio dos animais selvagens no deserto, assim também foi com Jesus. O que faz a diferença nesse relato comparativo é que o autor quer mostrar que Jesus consegue ser fiel até o fim, superando todos os desafios sem murmurar contra Deus. Se Jesus realmente tinha ido ou não para o deserto e ficou por 40 dias no meio dos animais selvagens e que foi tentado por satanás, isso não é o mais importante nesse texto. O objetivo principal desse relato comparativo foi para mostrar quem é esse Jesus de Marcos, tanto como indivíduo quanto como, principalmente, a personificação de um grupo (a comunidade dos discípulos e seguidores): ele é o mais Forte dos fortes (cf. 1,7; 3,27) e o mais Fiel dos fiéis, desde o começo até o fim (cf. Fl 2,8). Jesus é apresentado como uma personagem coerente, consistente e resistente, fiel e comprometido, corajoso e determinado. No meio de uma vida deserta Jesus demonstra a determinação de superar todos os desafios para honrar seu compromisso de vida e amor, que se imprime na prática de paz pela paz, de justiça pela justiça, de direito pelo direito, de liberdade pela libertação e de solidariedade crística.
O mundo em que estamos vivendo, mesmo neste pleno terceiro milênio, ainda representa uma realidade, verdadeiramente, desértica: as práticas de brutalidade e/ou crueldade contra vidas e patrimônios públicos, tanto quanto, particulares, intolerância religiosa (crime de ódio que fere a liberdade de consciência e da dignidade humana), peculatos, discriminação social, cultural e racial, corrupção psicoemocional e moral espiritual, injustiça social, impunidade, fratricídio, homicídio, conjungicídio, roubos e latrocínio, os abandonos. No campo da governabilidade, por exemplo, ainda paira o espírito colonial de liderança, o feudalismo, o centralismo e tiranias tanto nas instituições políticas quanto religiosas (nas igrejas, mesquitas, sinagogas, templos inclusive nos nossos lares familiares como nas comunidades religiosas). As intrigas, brigas e guerras continuam se multiplicando em todo lado. Todo o crime é, fundamentalmente, um ato pessoal, mas vinculado ao contexto social e econômico, que produz efeitos tanto na formação como na educação do cidadão, tornando, assim, como que uma cultura. Todo esse vício ainda visto e compreendido como se fosse algo tão normal. Toda essa realidade representa o nosso deserto e nossas feras (nossa animalidade selvagem) atuais, o registro do nosso comportamento diabólico que nos desafia a cada momento. Conforme a concepção judaica, o diabo sempre aproxima do ser humano para tentá-lo (cf. Gn 3,1-7; 1Cr 21,1; Sb 2,24). Estamos dispostos em superar nossos vícios, assim, podemos nos tornar homens e mulheres de Deus mais saudáveis? Este mundo perdeu sua sensibilidade humana!
O autor diz que Jesus só começa o seu anúncio depois que João Batista foi preso (v.14). Esse fim trágico da vida do Batista é interpretado como o “necessário” para que o novo tempo da graça comece o seu curso. Que todo o tipo de vício seja preso junto com João Batista, o porta-voz de Deus sacrificado por amor. Que a força do mal chegue ao fim para que a potência do bem opere a sua graça, dando a vida nova, em sua plenitude para todos. A palavra, depois, usada aqui por autor, é para dizer que a voz de Deus que grita no deserto chamando o seu povo voltar ao caminho da vida, já foi calada pela força do mal, mas não conseguiu extingui-lo, pelo contrário, como diz o ditado popular: um cai, mas mil outros surgirão para dar a continuidade do anúncio da paz e do amor neste mundo até que Deus seja tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). Jesus é o novo João que procura, chama, reúne todos os filhos e filhas de Deus e conduzi-lo pelo caminho da vida rumo à casa paterna.
Por isso que Jesus, ao começar seu ministério, faz questão de repetir o grito de João Batista, quando diz: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (v.15). A quaresma é o tempo de conversão, de mudança de mentalidade e atitudes, mudança de hábitos viciosos, desconstrutivos, momento de transformação de vida e amor fraterno. É o convite para cada um e cada uma de nós, homens e mulheres de Deus da humanidade. Momento de transformar a sequidão de vida desértica em terra fértil onde habita a paz, a justiça, o direito, a liberdade, a passividade, a compaixão e misericórdia. É urgente mudar a nossa maneira de ser, viver e relacionar; mudar o nosso jeito de ver o mundo e de governar. Que o novo céu e a nova terra comecem já, no aqui e agora da nossa vida terrena.
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Lukas Betekeneng