quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

SER HUMANO É O HOMEM DO PÓ OU DO ESPÍRITO EM CORPO VIVO?

A

 Igreja cristã (nem todas) inicia a celebração do Mistério pascal (a paixão, morte e ressurreição) de Cristo com a celebração de cinzas na quarta-feira (o Dia das cinzas), que é o começo do período de preparação ou, conhecido como tempo da Quaresma (40 dias de jejum e reflexão antes da Páscoa). Nessa celebração, os fieis recebem um sinal da cruz na fronte com cinzas, obtidas da queima das palmas usadas no domingo de ramos do ano anterior, enquanto ouvem uma frase bem conhecida, extraída do livro de Gênesis: “Tu és pó, e ao pó tornarás” (Gn 3,19). Essa frase também se ouve, geralmente, no rito cristão do enterro dos mortos. O que o autor quer nos dizer com essa frase? Qual seria o provável efeito colateral dessa frase na vida inconsciente do ser humano hoje? O homem é, afinal, o ser do pó ou do Espírito? Qual é a mensagem da celebração de cinzas para nossa vida como seguidores de Jesus Cristo?
A celebração do Dia das cinzas na quarta-feira (essa celebração não tem fundamento teológico-bíblico, pelo menos a Bíblia não mencionou em nenhum lugar, direta ou indiretamente, sobre a quarta-feira de cinzas) pelas Igrejas cristãs tem sua origem mitológica. Isto é, não começou no cristianismo propriamente dito, mas no paganismo, ou, melhor dizer, nas tradições não-cristãs (por exemplo, na Grécia antiga, no Egito antigo e no Antigo Oriente Médio). Havia uma crença nessas tradições (principalmente na Grécia antiga e no Egito antigo) de que o fogo é uma força que purifica e transforma e de que a vida renasce das cinzas. Enquanto que nas tradições do Antigo Oriente Médio, as cinzas e as poeiras eram jogadas sobre a cabeça das pessoas como sinal de arrependimento perante Deus. Apesar desses fatos são realidades extrabíblicas, o próprio rito de cinzas e seus significados simbólicos transcendem, sem dúvida, o pensamento e o agir teológico do cristianismo. Em todas essas coisas, há um significado que perdura para a nossa vida cristã: a esperança de que a vida, enquanto na mão de Deus, nada se perde, tudo se transforma, tudo cresce e tudo se afirma. O fim, para a vida, não existe, pois sempre haverá um porvir. Toda a existência terrena é uma realidade transitória, inclusive a vida humana. Assim, a existência de vida nesta terra, conforme o esquema do pensamento do evangelista Lucas, é uma grande jornada de volta à Origem.
Na tradição bíblica (AT), as cinzas e poeiras são usadas frequentemente como símbolo de arrependimento, tanto quanto, para sinalizar a relatividade dos valores das coisas existenciais, sobretudo a existência da vida humana (a vida material) nesta terra; isso não significa o desprezo da vida física. Alguns trechos bíblicos referentes às cinzas e/ou poeiras e outros similares com os mesmos significados simbólicos, podem ser encontrados, por exemplo, em Gn 18,27; Nm 19,9; 2Sm 13,19; Jó 2,8; 13,12; 30,19; Is 44,20; 61,3; Jr 6,26; Ez 27,30; Mt 11,21.
O autor do livro de Gênesis fala da criação do homem da argila do solo. Para se tornar um ser vivente, o Criador insuflou, no corpo modelado, pelas narinas com um hálito, isto é, o sopro de vida (cf. Gn 2,7). Podemos dizer, sem exagero, que o ser humano é como uma espécie de clone de Deus na terra. O significado desse relato é para reafirmar a dupla origem do ser humano: um ser celeste adaptado com a realidade própria do mundo e, ao mesmo tempo, uma existência terrena dotada de qualidades celestiais. Leonardo Boff fala de ser humano como um deus pequeno em contínua transformação. A morte, mais que uma constatação, é a lei: todos mudarão para “outro lado” passando pelo caminho da morte. A origem do homem não é do pó sóltico, mas é da parte íntima do próprio ser de Deus. A morte do corpo material é uma consequência natural da existência terrena, mas isso não significa o fim, é, pelo contrário, a mudança de aspecto, é redimensionado, é glorificado, transformado.
Entendemos por efeito dessa frase bíblica no nosso inconsciente a interpretação psicológica de maneira analógica. Isto é, baseada no resultado da observação crítica e da análise detalhada dos fenômenos dos comportamentos e atitudes do dia a dia. Olhando por esse lado, dizemos que, ao afirmar que o “ser humano é do pó, e deve voltar ao pó”, sem mais nem menos, pode causar uma consequência muito perigosa na formação de mentalidade das pessoas de poucas instruções sobre os valores culturais, éticas e moral social e religiosa, uma vez que as afirmações bíblicas são de cunhos simbólicos (parabólicas, alegóricas, comparativas, etc). As pessoas de instrução precária podem usar essa informação como se fosse uma verdade absoluta para basear a formação de sua mentalidade e atitudes no seu convívio relacional. Como exemplo, o comportamento de desrespeito aos valores sociocultural, política, econômica e moral/espiritual e religioso. Assim, cria-se a cultural da morte, da violência, da liberdade-irresponsabilidade, da autossufuciência, do egoísmo e egocentrismo.
Como cristão, no meu ver, essa frase bíblica é de suma importância, pois carregada de simbolismo altamente valioso para a nossa vida humana-espiritual. O ser humano entendido como a “fotografia” viva de Deus no mundo, ou como o Espírito do Criador divino em corpo humano na terra, deve ser sempre resgatado, respeitado e conservado custo que custar. O corpo não é menos valioso que a alma e o espírito. Como seriam eles sem o corpo para se expressar? Não passariam de uma ideologia abstrata, ou de uma ilusão fantasmagórica se não fosse o corpo para poderem se manifestar. Somente no corpo, do corpo e com o corpo que a alma e o espírito podem ser visto, palpado, sentido e compreendido. A celebração de cinzas e a frase bíblica são, portanto, um convite ao cuidado de tudo o que existe nesta terra, sobretudo, o cuidado da vida, própria, dos próximos e a dos demais. Convite à reeducação do caráter e das atitudes, cada vez mais humano e divino, mais justo e solidário, mais responsável e tolerante, mais respeito pela liberdade e pelo direito.
Que a graça da quaresma transforme o pensamento, o sentimento e a vontade de todos e de todas, tornando-os a cada dia mais sóbrio e salvífico.
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Lukas Betekeneng

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