quarta-feira, 12 de outubro de 2011

JESUS DE NAZARÉ É A “EROSFANIA” DE DEUS EM PESSOA OPERANDO NO MUNDO

(Jo 2,1-11)
H

á três modelos básicos (arquétipo) da experiência do amor de Deus que o povo de Israel tem feito, em três etapas, no decorrer de sua história: o amor agápico (o paternal/maternal ou, o amor criador), o amor erótico[1] (o amado/amante ou, o amor sustentador) e o amor philial (o amigo/irmão ou, o amor apoiador). A primeira experiência foi, principalmente, nos tempos dos patriarcas; a segunda foi nos tempos de profetas; e, por fim, a terceira, no tempo de Jesus. Assim, como o número três, na tradição bíblica, representa a plenitude, Jesus de Nazaré seria essa plenitude messiânica em pessoa que Deus tem prometido ao povo de Israel. Ou seja, toda a promessa messiânica de Deus para com o Israel (cf. Gn 3,15; 12,3; 18,8; 17,9; 22,18; 28,14; 49,10; Nm 25,17; 2Sm 7,12-16; Sl 89,3-4; Is 7,14; 11,1; Mq 5,2) se realiza em Jesus de Nazaré (cf. Mc 1,1-8; Mt 1,1-25; Lc 2,1-20; Jo 1,1-18; 7,42; At 3,25; Gl 4,4; Ap 12,5). Em outras palavras, Jesus de Nazaré é a promessa messiânica de Deus em pessoa agindo no mundo.
O simbolismo e seus significados. O Oriente ainda é um mundo diferenciado repleto de simbolismo e misticismo. Assim, em todos os textos bíblicos estão cheios de simbolismo cultural, próprio do mundo oriental. Por isso é difícil de decifrar com exatidão os significados de suas figuras representativas e expressões, pois são enigmáticas, rico de significados e muito dinâmicas, no sentido de em cada figura e/ou expressão usada pode ter mais de um significado, conforme os contextos vividos. Assim, neste texto de João também está repleto dessas figuras e expressões culturais. Veremos:
O casamento (bodas) representa a “erosfania”, isto é, a manifestação do amor de Deus para com o Israel (com a humanidade). Em outras palavras, as bodas de Caná simbolizam o caso amoroso entre a Divindade criador (o amado - Jesus) e a Humanidade criada (a amante – o Israel renovado - Maria). É o momento em que a graça da Criação e da Encarnação (o Agápico e o Erótico) se fundem e formam uma nova e única realidade kairótica, um tempo da graça, um novo amanhecer messiânico da fraternidade universal (cf. Gal 4.4; Mt 23,8; Jo 15,13.14.15).
Falta vinho. O vinho é símbolo da paixão amorosa e da alegria profunda e duradoura. A Mãe de Jesus sinaliza o seu filho sobre a precariedade de vinho na festa. Esse gesto profético de Maria significa que o povo de Israel está em perigo de perder o amor de Deus e da alegria de viver como povo eleito. O vinho representa, também, o cuidado de uma vida hidratada, salubre, do ponto de vista medicinal. Falta vinho significa, portanto, a vida – espiritual e afetiva, moral e material – está desidratada, insalubre, descuidada e corrompida.
A transformação de água em vinho simboliza a passagem do antigo para o novo tempo; da promessa profética à realização messiânica (do antigo povo de Deus para o novo). A transformação da infantilidade do velho homem adâmico em maturidade do novo homem crístico. Significa que a Aliança mosaica é resgatada, enriquecida, transformada, revigorada e superada pela Aliança jesuânica. A forma passiva (v. 3) da transformação de água em vinho assinala, na realidade, a atuação da força Divina, o poder criador de Deus no agir do Enviado.
A abundância do vinho de alta qualidade no banquete nupcial representa a garantia da felicidade de uma vida próspera, vista como bênção de Deus derramada sobre o labor humano, a graça da fartura após uma longa jornada e penosa de trabalho no solo (cf. Sl 126,5.6). É o sinal da realização da profecia messiânica (cf. Am 9,13-15; Jl 4,13; Jr 31,12-13; Gn 49,11). Núpcias, prosperidade e banquete são ricos de significados teológicos, por isso mesmo que, na tradição bíblica, tratados com propriedade como temas messiânicos (cf. Is 54,4-8; 62,4-5). A prosperidade, em si, não é nem bom nem mau. Ela não se pode ser enquadrada em nenhum adjetivo conforme o gosto psicológico de uma determinada pessoa. Ela é simplesmente a Dádiva divina dada como alimento para garantir a vida existencial, é a graça de Deus, o fruto do dom de trabalho. O problema da riqueza consiste, porém, no seu uso abusivo, no seu endeusamento, na acumulação para o bel-prazer a custo do sofrimento dos outros e dos demais. A prosperidade é o símbolo da qualidade de uma vida nutrida.
Seis talhas de pedra para o ritual de purificação onde as águas são transformadas em vinho simbolizam semanas de recriação (ou, de transformação, de re-nova-açãorenovar a ação - renovação) da humanidade (recriação do mundo) em Jesus Cristo, segundo a teologia joanina. O mundo é recriado em Jesus e com Jesus.
As palavras-chave: guardar. Lembra-se a ironia de Natanael contra Jesus: “De Nazaré pode sair algo de bom” (Jo 1,46)? Isso porque a Galileia foi acusado de paganismo por causa de seu espírito dinâmico e aberto, porque tem mais liberdade e mais dinâmico de pensar e interpretar a lei de Moisés do que a Judeia, que tende mais para o conservadorismo estéril. Aqui está a resposta dada aos adversários de Jesus através da boca do mestre-sala: “Todo o mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (v.10)! Ou seja, é de Nazaré da Galileia que se guarda (ou, se conserva) a qualidade do mandamento do amor de Deus, e não da Judeia. Esse reconhecimento assinala a ação salvífica de Deus. Isto é, Deus sempre exalta tudo aquilo que foi rebaixado, discriminado, desprezado (o rebaixamento vs a exaltação; a mortificação vs a ressurreição; a humilhação vs a glorificação). A palavra Nazaré significa, exatamente, o guardar. É isso mesmo, Maria e Jesus de Nazaré são aqueles que guardam (fidelidade) e conservam com maior criatividade na liberdade responsável da qualidade do amor de Deus até o momento presente. Maria e Jesus, nesse episódio, representam o modelo de fé, o Israel renovado (a nova humanidade). O noivo é o próprio Jesus de Nazaré. Sua fidelidade ao amor de Deus e criatividade na liberdade responsável de interpretar a lei é reconhecida e exaltada pela voz do mestre-sala. Esse reconhecimento que vai ser recapitulado na glória da cruz, na voz do centurião: “Realmente este homem era um justo” (cf. Lc 23,47).
Outra palavra-chave: a hora de Jesus joanino. É diferente de Lucas que fala do hoje da salvação, o autor da comunidade joanina fala da hora de Jesus. Mas o que Jesus quer dizer com essa frase: “minha hora ainda não chegou”? Talvez para poder entender a hora de Jesus joanino, seria bom voltar às palavras de promessa anterior: “Coisas maiores verás (1,50)”. Com isso, Jesus quis dizer que o episódio de Caná foi apenas um sinal e não a obra redentora que vai ser zelado com seu sangue na cruz. Ou seja, a hora do poder do amor de Deus vai ser manifestada de forma gloriosa na cruz, quando Jesus diz: “Está consumado” (19, 30). Essa é a hora em Jesus demonstra o pleno cumprimento do seu amor ao Pai, doando sua própria vida até à morte na cruz como resgate de vida dos seus amigos e irmãos (15,13).
O papel de Maria nas bodas de Caná. Através de sua palavra de fé e confiança profética: “Fazei o que ele vos disser” (v. 5), ela abriu uma ponta do véu da glória do Filho, conduz a fé dos discípulos ao Guru, orientou a confiança do povo a Jesus e inaugurou a nova maneira de ser fiel ao amor de Deus que se revela em Jesus Cristo. Com sua palavra de plena confiança, deu o pontapé inicial da vida pública do Filho. Assim, Jesus confirma essa iniciativa fundadora da Mãe, abrindo o sinal do novo caminho da vida e verdade de fé a seguir (o fiel-modelo). Isso é apenas um sinal, ainda têm muitos sinais maiores a serem realizados, portanto, não é a obra, propriamente dita, que ele vai realizar durante sua vida terrena. Isso quer dizer que o papel de Maria, nesse episódio inaugural, está intimamente relacionado com a hora de Jesus. Observa-se que João fala da Mãe de Jesus só duas vezes no seu Evangelho, uma nesse episódio da “semana inaugural” em Caná e, outra, na recapitulação da glória do amor de Deus no pé da cruz (19,25).
A confiança maternal de Maria forneceu ao povo o sinal de fé em Jesus Cristo. Ela é a fiel modelo, a discípula-mãe, a mulher intercessora, o exemplo de solidariedade. Ela é o caminho necessário de Deus para a humanidade e seu Filho Jesus é o caminho, a verdade e a vida da humanidade para Deus. A glorificação de Jesus na cruz zela a plena conformidade de sua vida com a vontade do Pai.
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BH. 11/10-2011
Lukas Betekeneng


[1] Para os mestres (e os sábios) espirituais orientais, o místico e o erótico são duas faces da mesma realidade. Dizem que Deus é o Erótico (o Mistério, o Espírito) que seduz e atrai, que cativa e provoca, que convida e aquece, que chama continuamente ao encontro, ao eterno enamoramento; e o ser humano é o corpo desse Mistério (o místico) presente no mundo. Ele é o caminho, a via de entrada para o Mistério (Jo12,45; 14,5). Por isso a erotização do Eros é a vulgarização do Mistério divino, a agressão contra a Divindade, a comercialização do Sagrado.

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